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ESTUDO: Gênero, classe e raça – um olhar sobre o trabalho doméstico no Brasil

Atualizado: 7 de dez. de 2017


Contra capa do livro "Housemaids" (2015), organizado por Victor Guimarães.



Ambuiguidades: entre a intimidade e a segregação


Entender a relação entre a empregada doméstica e seus patrões não é uma tarefa simples. Segundo Márcia Lima e Marta Rodriguez, “as características de cuidado que são da natureza mesma do trabalho doméstico - cuidado da casa, dos filhos, preparo da comida e a presença constante – geram uma teia de afetos” e intimidade, que convive com o poder e segregação; o que permite entrever a complexidade dessa relação ambígua[1].


O filme “Que horas ela volta?” (2015), estrelado por Val (Regina Casé), a empregada doméstica que mora na casa dos patrões há 10 anos, permite entender o desconforto que existe nessa relação. A visita de sua filha, Jéssica (Camila Márdila), traz turbulência ao ambiente da família ao contestar a maneira com a qual a empregada é tratada e a sua posição de humilhação. O filme causou rebuliço no público brasileiro, incomodado com a contestação do papel do servilismo - tão tradicional na cultura brasileira.


Segundo a cientista social Jurema Brites,

"Na própria realização das tarefas de cuidado e manutenção das casas e das pessoas – desempenhada, na esmagadora maioria das vezes, por mulheres pobres, fora da parentela dos empregadores –, assim como nas formas de remuneração e de relacionamento que se desenvolvem entre patrões e empregadas domésticas, reproduz-se um sistema altamente estratificado de gênero, classe e cor. No Brasil, a manutenção adequada desse sistema hierárquico que o serviço doméstico desvela tem sido reforçada, em particular, por uma ambigüidade afetiva entre os empregadores – sobretudo as mulheres e as crianças – e as trabalhadoras domésticas. Nas negociações de pagamentos extra salariais, na troca de serviços não vinculados ao contrato, nas fofocas entre mulheres e trocas de carinhos com as crianças é impossível deixar de reconhecer a existência de uma carga forte de afetividade. Esta, no entanto, não impede uma relação hierárquica, com clara demarcação entre chefe e subalterno, isto é, entre aqueles que podem comprar os serviços domésticos e aqueles que encontram, na oferta de seus serviços, uma das alternativas menos duras de sobrevivência no Brasil. Trata-se, portanto, de um processo amplo de reprodução da desigualdade[2]."


Isto é, mesmo com a criação de laços afetivos, mantém-se a distância social entre a empregada e os patrões, tal como pode ser exemplificado pela expres


são comumente usada “ela é praticamente da família” – dirigida por Barbara (Karine Teles) a Val no filme. O “praticamente” tem uma conotação muito forte da manutenção da distância social.


O “quarto de empregada” é um exemplo nítido dessa manutenção dicotômica de proximidade e segregação – “e é interessante pensar nessa separação de espaços como didática de uma distância social”[3]. Ele também pode ser pensado como uma marca semântica forte da manutenção da segregação espacial do trabalho servil, isto é, como uma transposição da casa de senzala para as residências modernas.


As residências são, dessa maneira, uma representação emblemática dessa distinção social (material e simbólica)[4]. Não é à toa que nesses espaços – geralmente são quartinhos pequenos em locais escondidos da casa, sem janelas, com pouca ventilação e luminosidade, cheios de baldes, vassouras e tudo o que “não presta mais” – não seja respeitada a individualidade das trabalhadoras. Além disso, pode-se notar que se localizam espacialmente em lugares escondidos no interior da casa, tal como se impõe à mulher na sociedade, confinada em espaços privados.


Muitas vezes, “morar no trabalho” implica em um alto nível de personalismo e em uma mistura entre o profissional e o pessoal. Sua presença constante significa que sempre está à disposição do(a) patrão(oa), o que abre caminho para a realização de trabalhos sem remuneração, horas extra ou passar longos períodos sem folgas ou férias.


Regina Casé em cena do longa metragem de Anna Muylaert, "Que horas ela volta?".


Onde entram gênero, classe e raça nesse papo?


Segundo Marta Rodriguez e Márcia Lima,


"A categoria dos trabalhadores nos serviços domésticos é historicamente reconhecida como o segmento mais inferiorizado do mercado de trabalho. Nele agregam-se pessoas mal remuneradas e principalmente trabalhadores informais, sem carteira de trabalho assinada, nem contribuição previdenciária. (...) Os empregados domésticos constituem uma categoria marcada pela baixa escolaridade (60% tem até o fundamental incompleto), com predominância da população negra (61,6%) e majoritariamente feminina (94,4%[5])."

Daí podemos depreender que o trabalho doméstico realizado no Brasil é principalmente realizado por mulheres negras pobres. Assim, e ainda de acordo com as autoras, é necessário compreendê-lo a partir da articulação entre os marcadores classe, raça e gênero. Isto é, considerando a interseccionalidade* do tema. Essa articulação tem duas esferas: uma material, ligada à produção de uma classe subalterna de trabalhadores e as mazelas das suas condições de vida e outra, ligada às representações sociais e à construção da imagem de um trabalho subalterno e desvalorizado. Em especial, Helena Hirata aponta que a origem dessa desvalorização está no “desvalor” dos trabalhos de casa e do âmbito da família, atribuídos tanto à mulher como às heranças escravocratas.


A manifestação dessa desigualdade simbólica por der vista no convívio diário. Na pesquisa etnográfica conduzida por Jurema Brites em Vitória (Espírito Santo), podemos ver marcadamente como esse imaginário de exclusão e submissão se dá. Jurema afirma que uma patroa entrevistada em Praia Velha falou sobre “o quanto é necessário ‘tratar bem’ as empregadas, sem deixar que as pessoas ‘confundam as coisas’”:


Outro dia, eu cheguei em casa e encontrei Alcina esparramada no sofá, assistindo TV. Os pés em cima da mesa, aqueles braços abertos sobre o encosto do sofá. Vê se pode? No mesmo lugar que depois eu e as minhas filhas vamos descansar! E ela lá, com aquela “inháca” no meu sofá!!

Então, ensinando como devemos nos comportar diante desta quebra de etiqueta, a patroa acrescenta: Ah, não tive dúvida. Chamei ela num canto e conversei, com jeito, que é para não ofender, entende? Porque também não se pode ter um inimigo em casa, melhor é usar do bom entendimento, percebe?

- Olha aqui, Alcina, não fica bem você ficar aí sentada na sala de visitas. Não que eu me importe, mas pode chegar alguém. E se Ernesto [namorado da patroa] aparece para jantar? Não fica bem, entende? Se você quiser assistir TV, veja no quarto das meninas[6].


A autora também traz exemplos de como esse imaginário é reproduzido pelas crianças (filhas dos patrões):


Pauline [4 anos]: Sabe, a Inês falou que a mãe dela disse que a gente não pode usar o banheiro da empregada.

Jurema: Por quê?

Pauline [5 anos]: Porque empregada tem doença na bunda.

Inês: É, a minha mãe explicou que se a gente senta no vaso onde a empregada senta, a gente pega doença, porque elas têm doença na bunda[7].


Do ponto de vista material, um exemplo concreto dessa desvalorização do trabalho doméstico é a forte resistência à Emenda Constitucional n.72 (mais conhecida como “PEC das Domésticas”), a qual prevê a equiparação dos direitos dos trabalhadores domésticos ao dos demais trabalhadores rurais e urbanos. Isto é, socialmente não se considera o trabalho doméstico como merecedor de remuneração e direitos equiparáveis aos dos demais trabalhadores.


Felizmente, existem indícios de que a mentalidade está mudando desde os últimos 20 anos e personagens como Jéssica, que contestam o status quo e reivindicam uma posição de simetria e igualdade estão ganhando espaço político – o que pode ser exemplificado pela própria aprovação da PEC das Domésticas.




Recomendação cinematográfica

Conhece o documentário “Domésticas” (2012)? Veja aqui.



Referências:

[1] Trabalho doméstico no Brasil: afetos desiguais e as interfaces de classe, raça e gênero. Marta Rodriguez e Márcia Lima, 2015.


[2] Afeto e desigualdade: gênero, geração e classe entre empregadas domésticas e seus empregadores, Jurema Brites, 2007.


[3] Afeto e desigualdade: gênero, geração e classe entre empregadas domésticas e seus empregadores, Jurema Brites, 2007.


[4] The Maid’s Rood: a tale of unchanging apartheid in a changing domestic space. Edja Trigueiro e Viviane Cunha, 2015.


[5] Afeto e desigualdade: gênero, geração e classe entre empregadas domésticas e seus empregadores, Jurema Brites, 2007.


[6] Afeto e desigualdade: gênero, geração e classe entre empregadas domésticas e seus empregadores, Jurema Brites, 2007.


[7] Afeto e desigualdade: gênero, geração e classe entre empregadas domésticas e seus empregadores, Jurema Brites, 2007.


Texto produzido por: Giovanna Thomé França



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